terça-feira, junho 20, 2006

EXAME DE URINA - Correlação Clínico Laboratorial

INTRODUÇÃO

Urinálise compreende as análises física, química e microscópica da urina, com o objetivo de detectar doença renal, do trato urinário ou sistêmica, que se manifesta através do sistema urinário. É um teste laboratorial amplamente utilizado na prática clínica, constituindo um dos indicadores mais importantes de saúde e doença.
Trata-se de um dos exames mais antigos de que se tem conhecimento, mas ainda carece de uma padronização universalmente aceita. Os componentes do exame de urina incluem a avaliação das características macroscópicas (cor e aspecto), físicas (pH e densidade ou gravidade específica), químicas (através de tiras reagentes), bioquímicas e microscópicas, além de testes confirmatórios quando necessário.
Os principais erros em urinálise incluem tipo de amostra inadequada para o exame a ser realizado, frascos de coleta inadequados, demora no transporte, falta de homogeneização das amostras, cuidados inadequados com os reagentes, uso de técnicas inadequadas, relato inadequado dos achados, desconsiderar um achado na análise, desconhecimento do papel dos interferentes e não analisar todos os achados em conjunto.

FORMAÇÃO

Os exames de urina vêm sendo utilizados há muito tempo, devido à facilidade de obtenção deste material biológico. O exame de urina tipo I é, sem dúvida, o mais solicitado neste fluido biológico, prestando-se a fornecer as informações necessárias sobre o funcionamento do sistema urinário, seja no diagnóstico ou para acompanhar algum tratamento indicado, fornecendo informações rápidas e econômicas.
A urina é formada pelos rins, sendo na verdade um ultrafiltrado do plasma, do qual foram reabsorvidos componentes essenciais ao metabolismo, como água, glicose, aminoácidos, etc. Ela é formada por uréia e algumas outras substâncias dissolvidas em água. As concentrações destas substâncias podem variar de acordo com metabolismo, ingesta alimentar, atividade física, função endócrina e até posição do corpo.

COLETA

Para que seja feita uma interpretação correta do exame de urina é importante que a coleta do material obedeça a uma série de precauções para que a amostra seja representativa e reflita todas as alterações físico-químicas que serão analisadas.
A amostra deve ser coletada em recipiente limpo e seco, preferencialmente descartável. É aconselhável a coleta do jato urinário médio, após uma estase vesical de 2 a 4 horas e após assepsia dos órgãos genitais externos, evitando-se coleta de urina no período menstrual ("hematúria falsa"). Após a coleta as amostras devem ser encaminhadas em até duas horas ao laboratório a fim de eliminar possíveis alterações celulares e bioquímicas e processadas o mais rapidamente possível.

Tipos de amostra - depende da análise a ser realizada.

Amostra isolada aleatória - Amostra ideal para o exame de rotina, coletada após 2 a 4 horas de estase vesical. Crianças sem controle da micção necessitam fazer uso de coletores auto-aderentes para obtenção da amostra. A coleta de urina via cateter ou sonda é realizada apenas sob indicação médica.

Amostra de urina minutada - volume de urina coletado em determinado período de tempo (resultados expressos em excreção /minuto). A mais habitual é a Urina de 24 Horas, utilizada para dosagem quantitativa de componentes urinários. Amostras de urina devem ser recolhidas em frascos apropriados e identificadas por um período de 24 horas. As amostras também devem ser conservadas em geladeira até que sejam levadas ao laboratório.

EXAME MACROSCÓPICO

Volume - Não possui significado clínico e seu relato é opcional. O valor normal de urina produzida em 24 horas em adultos é de 1200 a 1500 mL e em crianças 15 mL/ Kg de peso.

Cor - A cor da urina depende da presença e concentração de pigmentos de origem alimentar, medicamentosa e até mesmo endógena A urina normal geralmente é amarelada devido à presença de um pigmento chamado urocromo, produto do metabolismo endógeno e produzido em velocidade constante.
Como variações de coloração nas amostras de urina anormais encontramos:
Amarelo Palha - Recente ingestão de líquidos ou no caso de diabetes (tanto insípidus quanto mellitus).
Âmbar - Presença de bilirrubina na amostra.
Alaranjada - Interferência de medicamentos, como Piridium ou mesmo vitamina A.
Vermelha - Presença de hemácias, hemoglobina, mioglobina e porfirinas.
Castanha / Preta - Alcaptonúria (presença de ácido homogentísico), presença de melanina.
Verde - Interferência de medicamentos (Amitriptilina, metocarbamol, indican e azul-de-metileno)

Aspecto - Termo que se refere à transparência da amostra de urina analisada. A urina normal tem aspecto límpido, porém pode sofrer alterações devido à presença de numerosas células epiteliais, de leucócitos, hemácias, bactérias e leveduras, filamentos de muco e de cristais.

EXAME FÍSICO QUÍMICO - realizado através de tiras reativas (reagentes) contendo seguintes áreas reagentes: pH, proteínas, glicose, cetona, sangue, bilirrubina, urobilinogênio, nitrito, leucócitos e densidade. As tiras reagentes baseiam-se em metodologia de química seca cujos resultados podem ser determinados visualmente ou através de instrumentos semi-automatizados ou automatizados.
Com relação a utilização das tiras reagentes, é necessário, antes de mais nada, homogeneizar bem a amostra e a seguir mergulhar rapidamente a tira reagente na amostra e retirar o excesso de urina da mesma. A leitura visual é realizada comparando as cores obtidas com a escala-padrão, respeitando o tempo de cada reação. Já as leitoras semi-automatizadas ou automatizadas são fotômetros de reflectância que medem a luz refletida a partir da área reagente.

pH - Os rins são os grande responsáveis pela manutenção do equilíbrio ácido-base do organismo, eles são capazes de manter a homeostasia do corpo eliminando grandes quantidades de ácidos ou bases através da urina.
Valor normal: 5,5 a 6,5.
Significado Clínico: Tipo de alimentação, acidose ou alcalose respiratória / metabólica, anormalidades na secreção e reabsorção de ácidos e bases pelos túbulos renais, precipitação e formação de cálculos e tratamento das infecções do trato urinário.
Interferências: Nas amostras de urina envelhecidas, o pH se mostra elevado, devido a um desdobramento de uréia em CO2 e amônia, sendo que a amônia tem poder alcalinizante.

Densidade - Ajuda a avaliar a função de filtração e concentração renais e o estado de hidratação do corpo.
Valores normais: 1,010 a 1,025.
Significado Clínico: Estado de hidratação do paciente, incapacidade de concentração pelos túbulos renais, diabetes insípido e determinação da inadequação da amostra por baixa concentração.

Proteínas - Normalmente, as proteínas urinárias são constituídas pela albumina e por globulinas secretadas pelas células tubulares. Entre as proteínas não plasmáticas observadas na urina, destaca-se a mucoproteína de Tamm-Horsfall, proveniente dos túbulos distais. Sua importância decorre do fato de que esta proteína é a base dos cilindros encontrados na urina.
Valores normais: 150 mg/24 horas (geralmente séricas e de baixo peso molecular, filtradas seletivamente pelos glomérulos).
Significado Clínico: Lesão da membrana glomerular (distúrbios do complexo imune, agentes tóxicos), comprometimento da reabsorção tubular, mieloma múltiplo, nefropatia diabética, proteinúria ortostática ou postural.

Glicose – em situações normais quase toda a glicose filtrada pelos glomérulos é reabsorvida pelos túbulos proximais.
Valores normais: negativo.
Significado Clínico: Diabetes mellitus (glicemia superior a 180 mg/dl), alterações na reabsorção tubular e lesão do sistema nervoso central e alterações tireoideanas.

Cetonas – O termo cetonas envolve três produtos intermediários do metabolismo de gorduras: acetona, ácido acetoacético e ácido beta-hidroxibutírico.
Valores normais: Geralmente não aparecem em quantidade mensuráveis, pois a gordura é completamente degradada e convertida em dióxido de carbono e água.
Significado Clínico: Acidose diabética (incapacidade de metabolizar carboidratos), controle da dosagem de insulina, jejum (a fonte principal de fornecimento de energia, os carboidratos, fica prejudicada) e perda excessiva de carboidratos (como no caso de vômito).
Interferências: Em amostras mal conservadas, valores muito baixos podem aparecer falsamente, devido à volatilização da acetona e à degradação do ácido acetoacético por bactérias.

Sangue (hemácias / hemoglobina) - Pode estar presente na urina na forma de hemácias íntegras ou na forma de hemoglobina (produto da destruição de hemácias in vivo ou in vitro). Sofre interferência da mioglobina.
Valores normais: Negativo
Significado Clínico:
. Hematúria - Cálculos renais, glomerulonefrite, pielonefrite, tumores, trauma, exposição a produtos ou drogas tóxicas e exercício físico intenso.
. Hemoglobinúria - Reações transfusionais, anemia hemolítica, queimaduras graves, infecções e exercício físico intenso.
. Mioglobinúria - Traumatismo muscular e coma prolongado.

Bilirrubina - Produto intermediário da degradação da hemoglobina. Presente no organismo de duas formas: bilirrubina não-conjugada e bilirrubina conjugada, porém, somente a última é excretada pelos rins e pode aparecer na urina.
Valores normais: Não aparece na urina, pois passa diretamente do fígado para o ducto biliar e daí para o intestino, onde é convertida em urobilinogênio e excretada nas fezes na forma de urobilina.
Significado Clínico: Indicação precoce de possível hepatopatia, como, hepatite, cirrose e até mesmo obstrução biliar.
Interferências: Nas amostras de urina envelhecidas, como a bilirrubina é um composto muito instável, com a sua exposição à luz, ela se oxida, formando biliverdina e bilirrubina livre, ambas pouco reativas aos testes colorimétricos. A presença de ácido ascórbico e nitrito também prejudica a precisão dos testes. Caso a fita reagente aponte resultado positivo para bilirrubina deve-se realizar testes confirmatórios, como por exemplo a reação de Fouchet, baseado oxidação da bilirrubina a biliverdina pelo cloreto férrico dissolvido em ácido tricloracético

Urobilinogênio – pigmento resultante da degradção da hemoglobina.
Valores normais: Normalmente se encontra em quantidade menor que 1 mg/dl de urina ou até a diluição 1:20. Ele pode aparecer na urina pois quando circula pelo sangue a caminho do fígado, pode passar pelos rins e ser filtrado pelos glomérulos. Para a confirmação utiliza-se a reação de Erlich, entre outras.
Significado Clínico: Detecção precoce de distúrbios hepáticos e hemolíticos. Estas disfunções hepáticas diminuem a capacidade do processamento desta substância.

Nitrito - Aparece devido a capacidade de algumas bactérias gram negativas fermentadoras reduzirem o nitrato (constituinte normal da urina) em nitrito.
Valores normais: Negativo.
Significado Clínico: Infecção de trato urinário, podendo ser útil na avaliação da terapia com antibióticos e monitoração de pacientes com alto risco de infecção no trato urinário.
Interferências: Uso de antibióticos, presença de elevada concentração de ácido ascórbico, baixa concentração de nitrato e conversão de nitrito em nitrogênio (que não é detectável), que ocorre quando o número de bactérias presentes é muito elevado e produz resultados falso-negativos.

Leucócitos – detecta esterases presentes nos granulócitos
Valores normais: Negativo.
Significado Clínico: Infecção do trato urinário e seleção de amostras para cultura.


ANÁLISE DO SEDIMENTO

Tem a finalidade de detectar e identificar todos os elementos insolúveis, como hemácias, leucócitos, cilindros, cristais, células epiteliais, bactérias, leveduras, parasitas e possíveis artefatos.

Pode ser realizado através de
. Microscopia óptica comum: Câmara de contagem, entre lâmina e lamínula ou sistemas padronizados
. Automação: Citometria de fluxo ou Analisador de imagens

Preparo do sedimento para exame microscópico
A padronização do preparo do sedimento é fundamental para a boa performance do exame microscópico da urina. Assim deve-se padronizar:
. Volume de urina centrifugada
. Tempo de centrifugação
. Velocidade de centrifugação
RCF = 1,118 x 10-5 x r x N2
RCF = força centrífuga relativa = 400
r = raio do rotor (em cm)
N = rotações por minuto
. Fator de concentração do sedimento
. Volume do sedimento analisado
. Sistema de contagem: Lâminas e lamínulas / Câmaras de Contagem / Sistemas padronizados

Exame microscópico - A maneira pela qual o exame microscópico é realizado tem que ser consistente, incluindo a observação de no mínimo dez campos em menor e maior aumento (100 e 400x). A observação em menor aumento tem por objetivo avaliar a disposição dos elementos, a composição geral do sedimento e a presença ou não de cilindros. A identificação e contagem de todos os elementos presentes são realizadas em aumento de 400x.

Identificar e Relatar

Hemácias – aparecem em diversas situações, tais como :
. lesões no parênquima renal
. lesões de trato urinário
. alterações hematológicas e outras causas

Leucócitos – aparecem em infeções do trato urinário e em processos inflamatórios

Cilindros - formam-se no interior do túbulo contorcido distal e ducto coletor e têm matriz primariamente composta de mucoproteínas de Tamm-Horsfall, sendo sua aparência influenciada pelos elementos presentes no filtrado durante a sua formação.
. Cilindros Celulares - hemáticos, leucocitários, epiteliais
. Cilindros Acelulares - hialinos, granulosos, céreos, lipoídico
. Cilindros pigmentares - hemoglobínicos e bilirrubínicos

Cristais - São freqüentemente achados na análise do sedimento urinário, têm ligação direta com tipo de dieta e raramente possuem significado clínico. Eles são formados pela precipitação dos sais da urina submetidos a alterações de pH, temperatura e concentração.

* Cristais Não Patológicos
. Urina ácida - ácido úrico, oxalato de cálcio, urato amorfo
. Urina alcalina - fosfato triplo (fosfato amoníaco-magnesiano), fosfato amorfo, carbonato de cálcio, fosfato de cálcio
* Cristais Patológicos - Leucina, Tirosina, Cistina, Colesterol, Bilirrubina, Hemossiderina

Células Epiteliais - Freqüentemente podemos encontrar células epiteliais na urina, já que são partes do revestimento do sistema urogenital.

. Células pavimentosas - freqüentes tanto em homens quanto em mulheres, provenientes de células da vagina e das porções inferiores da uretra.

. Células de transição - originárias da bexiga e porção superior da uretra

. Células do túbulo renal - sua presença indica lesão tubular

Microrganismos – bactérias, fungos e parasitas

Outros elementos - muco, contaminantes e espematozóides. Estes últimos podem ou não ser relatados na dependência da padronização de cada laboratório


PESQUISA DE DISMORFISMO ERITROCITÁRIO - útil para diferenciação entre hematúria glomerular e não-glomerular. A presença de codócitos e/ou acantóctos sugere hematúria de origem glomerular.

Técnica: microscopia de contraste de fase

Expressão dos resultados: baseia-se no tipo de hemácia presente:

. Normal - Ausente (A)

. Codócitos - Presença de codócitos

. Acantócitos - Presença de acantócitos

. Codócitos e acantócitos - Presença de codócitos e acantócitos

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARGERI, N.L., LOPARDO, H.A. Análisis de Orina - Fundamentos y práctica. Editorial Médica Panamericana S.A., Buenos Aires, Argentina, 1993
GRAFF, S.L. Analisis de Orina - Atlas Color. Editorial Médica Panamericana S.A., Buenos Aires, Argentina, 1987
HARBER, M.H. Urinary Sediment: a textbook atlas. American Society of Clinical Pathology Press, Chicago, IL, 1981
HARBER, M.H., CORWIN, H.L. Urinalysis. Clin. Lab. Med, 8(3): 415-620, 1988
KÖHLER, H.; WANDEL, E.; BRUNCK, B. Acanthocyturia - A characteristic marker for glomerular bleeding. Kidney International, 40: 115-20, 1991
NGUYEN, GK Urine cytology in renal glomerular disease and value of G1 cell in the diagnosis of glomerular bleeding . Diagn Cytopathol,29(2):67-73, 2003
RINGSRUD, K.M., LINNÉ, J.J. Urinalysis and body fluids. Mosby-Year Book, Inc. St. Louis, MO, 1995
STRASINGER, S.K. Urinálises e Fluidos Biológicos. 3a edição, Editorial Premier Ltda, 1998.
SURITA, R.J.S. Utilidade da morfologia dos eritrócitos urinários no diagnóstico clínico das hematúrias. Campinas, 1995. Tese de mestrado apresentada à Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas.
SURITA, R.J.S.; BOTTINI, P.V.; ALVES, M.A.V.F.R. Erytrhocytes morphology in diagnosing the origin of hematuria. Kidney International, 46(6): 1749, 1994 (resumo).
SURITA, R.J.S.; BOTTINI, P.V.; RIBEIRO-ALVES, M.A.V.F. Hematúrias: avaliação da utilidade da observação da morfologia dos eritrócitos urinários. Rev. Bras. Nefrol, 26 (suppl): 37, 1994 (resumo).
TOMITA, M.; KITAMOTO, Y.; NAKAYAMA, M.; SATO, T. A new morphological classification of urinary erythrocytes for differential diagnosis of glomerular hematuria. Clinical Nephrology, 37(2): 84-9, 1992.